segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Il maledeto cuore

Não há parte no corpo humano mais valorizada, badalada, alardeada aos quatro cantos do mundo que o coração, mas eu vos digo, nobres amigos, é a nossa parte mais ingrata. Ninguém lembra desse maldito quanto tudo vai às mil maravilhas, mas, quando funesta solidão lança a sombra da sua mão direita sobre nossas cabeças, ele dana-se a pulsar, latejante, como um brake light do bonde da angustia.

E o pior, ele não avisa nada. Fica caladinho enquanto o carro está completamente desgovernado a caminho do abismo mais negro e profundo e só dá sinal de vida quando estamos em queda livre. Sim, caros amigos, esse vil e ingrato pedaço de nós sente prazer em nos apunhalar pelas costas. Certa vez saiu da pena de um sujeito chamado Miguel de Unamuno a seguinte sentença: “Há momentos em que silenciar é mentir”. Ninguém nunca disse nada mais acertado, acho até que ele havia levado um belo par de chifres quando soltou essa. Pois é, o coração é mesmo um Brutus. Como uma bússola, ele nos guia para a Macondo da carência, pólo norte da existência solitária. A tragédia pode ser a mais anunciada, mas ele nos venda os olhos, sussurra palavras doces aos ouvidos e até pega na nossa mão e nos conduz ao infortúnio.

Não bastasse rir da nossa desgraça, o bastardo nos incentiva a fazer as maiores idiotices possíveis... Quem nunca reclamou da cegueira de uma paixão? Quem nunca ouviu falar de um corno que matou o seu urso e perdoou a moça que lhe parafusou na testa dois adereços pontiagudos? O sujeito senta à mesa de um bar, pede o velho malte escocês e o vil coração sibila ao ouvido as palavras mais agudas de sua língua ferina - seja ela qual for, inglês, francês, português ou até mesmo em guarany, idioma adorado pelo nosso Ruy- o Grude não, o cabeçudo Barbosa - ao passo que o fígado, verdadeiro companheiro leal, nos conforta e dá tapinhas amistosas nas costas.

O fígado é uma mistura de livro de auto-ajuda e garçom amigo, é uma espécie de faxineira que limpa o álcool do seu organismo, bagunça causada pelo coração. Enquanto todos louvam o traiçoeiro vilão que faz o jogo duplo, o fígado trabalha caladinho, silencioso, prestativo e fiel. Há muito, decidi a quem dar ouvidos e até tatuei em letras garrafais “Troca-se um coração por um fígado”.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

O último trago.

Caia uma tempestade de Noé lá fora, mas nada parecia importar àquele rapaz. Uma mesa de carvalho escura, uma grade de cerveja por completar, um banquinho de três pernas que o acomodava e, à sua frente, um copo americano, nunca vazio, mas raramente transbordante... Podia-se ouvir muito de longe o cantarolar da vitrola daquela vizinha gorda tocando um bolero de Bienvenido Granda. Assim era aquela tarde, pintada em tons de cinza e ocre.

Sentia sua alma reverberar a cada gole. Tinha uma decisão importante pela frente e a cerveja - companheira há muito e de sempre - o encorajava. Procurava encher o peito de coragem à medida que esvaía o conteúdo daquelas garrafas... Mas era outro sentimento que lhe tomava, e não era angústia, mas um desalento quase prostrado... havia se conformado. Bebeu até completar o engradado, mas guardou o gole derradeiro... Ah, aquele certamente seria sagrado, acompanhado por um ritual, uma espécie de meditação. Repassou todos os anos vividos melancolicamente e, pela primeira vez na vida, não sentia saudades do futuro. Suspirou e sorveu o último trago daquele precioso líquido amargo, que lhe adocicava e dourava a vida, que, a partir de então, seria fosca e gris, exatamente como aquela tarde.


Ao Trem Bão.