quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Crônica Anacrônica.

Diz-se por aí que o tempo é um medonho cão raivoso, Cérbero, que nos arrasta insofismavelmente pela bainha de nossas calças até o vazio do esquecimento. Areia da ampulheta que nos escapa por entre os dedos e nos traga, movediça, até nos enterrar em sepulturas. O velho decrépito e colossal Kronos com seu belo Tissot, esperando os filhos nascerem para então devorá-los, contando os segundos, tic-tac, com direito à cuco despertador e outras cositas mas.

Eis que a civilização - sioux ou turca, ocidental ou oriental, moderna ou antiga - precisa dessa invenção. A medida varia... Segundos, minutos, dias, luas... E por aí vai. O fato é que independente da métrica usada, a sabida invenção nos é, se não indispensável, no mínimo útil. Não tem outro jeito de dizer isso, nada mais precioso que o tempo em tempos como esse, certo?

Tende-se a ver bidimensionalmente, digo, tempo x espaço. É a velha história do: "Era uma vez, há muito tempo atrás, um lugar chamado..."Não entro na questão espacial agora, deixo a oportunidade para, talvez, tratar do assunto com mais minúcia e zelo posteriormente, se tiver tempo, é claro.

Enfim, que é tempo senão a régua que inventamos para medir nossa história? Já percebeu que o sol está lá em cima desde sempre e à ele não interessa o seu horário de almoço, ou mesmo quanto tempo faz desde que a maldita Bastilha foi tomada? Que determinadas situações passam voando e outras se arrastam, para depois de uma eternidade, se consumarem, devorando apenas alguns segundos? Que dizer daquela moça bonita que te fita os olhos, ainda que de relance? Certamente perdurou mais na memória que todo um expediente teimoso e infindável de labuta enfadonha.

Certamente, pelo menos para mim, este bacana que vos escreve, é impossível imaginar a desconstrução do tempo na vida coletiva, ao passo que no âmbito individual é só uma questão de costume. É aí que está o curinga do baralho, neguinho, believe me.

Você deve estar achando que perdeu tempo lendo a ladainha de mais um cabeção pouco original que se julga o doutor da Sorbonne, fazendo resenha barata sobre o tema mais batido no mundo, carpe diem... Bem, isso aqui não é nenhuma apologia à irresponsabilidade desesperada e desenfreada. O tempo é uma invenção útil que deveria nos servir, e não nos escravizar. Devora o tempo ou sê devorado por ele. A escolha é sua. Particularmente, prefiro saborear meus momentos.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Todo castigo pra corno é (era) pouco

Não adianta qual o caminho trilhado por uma conversa de bar, ela inexoravelmente porá seus pezinhos nesse pântano da tristeza e amargura, domínios da traição. O assunto sempre foi um dos preferidos de uma mesa e isso não é nem de longe novidade. O que me faz debruçar sobre a matéria em questão é a nova abordagem que lhe conferem atualmente.

Antigamente uma gaiazinha das menores, um mínimo biliro de vaca, era motivo para um banho de sangue, corno raivoso e amargurado pro resto da vida. Eu mesmo, diante de um infortúnio, cheguei a dizer: “Pisei em rastro de corno! Ou melhor, levei gaia e pisei no meu próprio rastro!” Depois, com calma, passei a analisar o assunto e aderi à turma dos novos valores. Pois é, soa estranho aos meus ouvidos, afinal, na minha humilde concepção, quem comete um ato vil não pode manchar qualquer reputação que não a sua própria. O pobre do corno só recebeu um presente, não há razão para vergonha nisso.

O grande guru do cotidiano, nosso brilhante conterrâneo Xico Sá diz que somente uma gaia é capaz de humanizar um canalha... De fato, já conheci calhorda daqueles que praticamente fazia um colar das calcinhas que colecionava, inchava o peito de impáfia e arrotava seus feitos até que eles ecoassem e retornassem aos seus ouvidos. Bem, o fim dessa história não poderia ter sido outro... Certo dia foi presenteado pela esposa e seu leiteiro. Ganhou de vale-brinde uma passagem para a Cornualha... ficou tão mais humilde, poverino!

Gerônimo, um comerciante e radialista lá das bandas de Cavaleiro, certa vez me disse: “Meu filho, se a mulher lhe trair um dia é porque deixou faltar amor, seu beijo não tem mais sabor e você não é homem pra ela”. Depois de ouvir sentença tão sábia, o Mago, meu irmão emendou sem deixar a bola cair: “O cara só é um homem de verdade depois de ter levado uma gaia, por mais miúda que seja”. Levar gaia agora é moda, Falcão e o Rei Rossi profetizam isso todo santo dia. Afinal, um homem sem chifre é um animal indefeso, não é verdade?

O supracitado Mago, em discussão fervorosa acerca do tema com o amigo Florinda, chegou a uma conclusão brilhante: “Ninguém leva gaia de uma comerciante do amor". Bem, nisso todos concordamos, ainda não soube de alguém que levou gaia de tal profissional. Iluminado pela cerveja, continuou o Mago a dizer: “A mulher quando pensa em botar gaia no cara, só esse pensamento é capaz de desvirtuá-la e nesse momento ela vira quenga”. A conclusão foi digna de um brinde. A vergonha não é ser corno, pois isso não existe, mas em continuar a namorar uma quenga.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Il maledeto cuore

Não há parte no corpo humano mais valorizada, badalada, alardeada aos quatro cantos do mundo que o coração, mas eu vos digo, nobres amigos, é a nossa parte mais ingrata. Ninguém lembra desse maldito quanto tudo vai às mil maravilhas, mas, quando funesta solidão lança a sombra da sua mão direita sobre nossas cabeças, ele dana-se a pulsar, latejante, como um brake light do bonde da angustia.

E o pior, ele não avisa nada. Fica caladinho enquanto o carro está completamente desgovernado a caminho do abismo mais negro e profundo e só dá sinal de vida quando estamos em queda livre. Sim, caros amigos, esse vil e ingrato pedaço de nós sente prazer em nos apunhalar pelas costas. Certa vez saiu da pena de um sujeito chamado Miguel de Unamuno a seguinte sentença: “Há momentos em que silenciar é mentir”. Ninguém nunca disse nada mais acertado, acho até que ele havia levado um belo par de chifres quando soltou essa. Pois é, o coração é mesmo um Brutus. Como uma bússola, ele nos guia para a Macondo da carência, pólo norte da existência solitária. A tragédia pode ser a mais anunciada, mas ele nos venda os olhos, sussurra palavras doces aos ouvidos e até pega na nossa mão e nos conduz ao infortúnio.

Não bastasse rir da nossa desgraça, o bastardo nos incentiva a fazer as maiores idiotices possíveis... Quem nunca reclamou da cegueira de uma paixão? Quem nunca ouviu falar de um corno que matou o seu urso e perdoou a moça que lhe parafusou na testa dois adereços pontiagudos? O sujeito senta à mesa de um bar, pede o velho malte escocês e o vil coração sibila ao ouvido as palavras mais agudas de sua língua ferina - seja ela qual for, inglês, francês, português ou até mesmo em guarany, idioma adorado pelo nosso Ruy- o Grude não, o cabeçudo Barbosa - ao passo que o fígado, verdadeiro companheiro leal, nos conforta e dá tapinhas amistosas nas costas.

O fígado é uma mistura de livro de auto-ajuda e garçom amigo, é uma espécie de faxineira que limpa o álcool do seu organismo, bagunça causada pelo coração. Enquanto todos louvam o traiçoeiro vilão que faz o jogo duplo, o fígado trabalha caladinho, silencioso, prestativo e fiel. Há muito, decidi a quem dar ouvidos e até tatuei em letras garrafais “Troca-se um coração por um fígado”.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

O último trago.

Caia uma tempestade de Noé lá fora, mas nada parecia importar àquele rapaz. Uma mesa de carvalho escura, uma grade de cerveja por completar, um banquinho de três pernas que o acomodava e, à sua frente, um copo americano, nunca vazio, mas raramente transbordante... Podia-se ouvir muito de longe o cantarolar da vitrola daquela vizinha gorda tocando um bolero de Bienvenido Granda. Assim era aquela tarde, pintada em tons de cinza e ocre.

Sentia sua alma reverberar a cada gole. Tinha uma decisão importante pela frente e a cerveja - companheira há muito e de sempre - o encorajava. Procurava encher o peito de coragem à medida que esvaía o conteúdo daquelas garrafas... Mas era outro sentimento que lhe tomava, e não era angústia, mas um desalento quase prostrado... havia se conformado. Bebeu até completar o engradado, mas guardou o gole derradeiro... Ah, aquele certamente seria sagrado, acompanhado por um ritual, uma espécie de meditação. Repassou todos os anos vividos melancolicamente e, pela primeira vez na vida, não sentia saudades do futuro. Suspirou e sorveu o último trago daquele precioso líquido amargo, que lhe adocicava e dourava a vida, que, a partir de então, seria fosca e gris, exatamente como aquela tarde.


Ao Trem Bão.

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Réquiem

Lembrou-se amargamente daquele fato por diversas vezes nos anos que se seguiam. Costumava sonhar acordado. Aquela recordação resistia imaculada de forma incrível à erosão do tempo, esse borrão que apaga ou ofusca até os fatos mais importantes que guardamos no mais remoto rincão de nossas mentes.

Sempre soubera que aquela haveria de ser a sua última lembrança, e, certamente, era a mais recorrente. No dia de sua morte, bebericava naquele mesmo saloon onde desafortunadamente se encontrava há anos. Pediu mais uma cerveja e se deu conta de que o peculiar gosto amargo daquela doce bebida trazia a tona àquela lembrança que o assediava com certa constância. Sabia que lhe fazia mal, mas ainda assim a buscava sofregamente, tal qual, um viciado busca a mão enevoada que o ópio lhe estende.

Ocorreu-lhe, entre um trago e outro, que aquele fatídico dia, marcado na mais amarelada das páginas de seu calendário, perdurava até então... Pra ele, o tempo parou ali, explicando o fato da lembrança permanecer intacta.

Ainda jovem, no desabrochar de sua adolescência, costumava ir ali para confraternizar com os colegas, ou mesmo para refletir um pouco... Gostava de ver o movimento e a agitação das ruas. Entretanto, justamente nesse dia, pôs-se a conversar com o balconista, de sorte que se encontrava de costas pra rua. Uma voz sussurrou-lhe aos ouvidos, não sabe até hoje se foi o anjo ou o diabo, mas o fato é que ele virou-se, e como que por um ímã, seus olhos foram atraídos. Assistia extasiado à cena que se lhe apresentava.

Não havia adjetivo, superlativo ou qualquer artifício lingüístico em nenhum idioma conhecido que a definisse, nem talvez na língua dos anjos. A beleza daquela criatura que desfilava ali, perante a sua figura, transcendia os padrões humanos. Nesse momento ela deslizava, como que andasse sobre brumas. Olhou o pobre rapaz nos olhos e lhe sorriu um sol. Passou anos procurando a sua musa, para depois compreender que ela o encontraria quando ele estivesse pronto.

Via-se claramente, naqueles dias particularmente mais melancólicos que se sobrepunham, nos olhos marejantes - binóculos da saudade que refletiam sua memória - estilhaços daquele sol, projetado perfeitamente por suas lembranças, mas fragmentado pela dor agridoce e angustiada do seu coração. O Olhar sempre perdido no horizonte parecia somente interessar-se pelo que via dentro de si, desprezando qualquer possibilidade de absorver o mundo que lhe rodeava. Era como quisesse se virar do avesso para que aquelas coisas tão belas viessem à tona novamente. Vivia ensimesmado e contemplativo, já não conversava mais, resumindo-se a divagar poucas palavras, sempre muito mascadas antes de serem pronunciadas. Murmúrios.

Pediu outra cerveja, mais outra, e mais outra. Desejava mergulhar de cabeça nos seus pensamentos, cada vez mais intensos. Pagou a conta e levou a saideira para tomar em casa. Sentou-se na sua poltrona preferida e abriu a garrafa... Sabia que aquela seria a última cerveja que haveria de tomar. Sorveu em pequenos goles saboreando com o palato de sua língua. E, serenamente, esperou a morte que há muito lhe fora anunciada.

Ela veio com aquele sorriso, tomou-lhe a mão e acariciou seu rosto com uma flor amarela. Assim permaneceram sem dizer absolutamente nada, apenas contemplando-se mutuamente. Havia se apaixonado há anos e desde então esperava por esse momento. Sorriu tranqüilamente, tomou aquelas mãos frias e brancas, fitando os dedinhos delicados e pensou que pareciam ser de porcelana... E assim passaram muito tempo, até que ela o convidou e saíram caminhando de mãos dadas para não mais voltarem.

Os velhos camaradas, que sempre deixavam flores num casco vazio de cerveja, liam em sua lápide a seguinte frase: “O boêmio que esqueceu de viver, se entregou à bebida, mas, por amar demais a solidão, transcendeu por overdose de melancolia”. Nunca compreenderam – nem podiam - que a morte sempre o acompanhara e que ele aguardava ansiosamente a sua aparição, para definitivamente encontrar a sua amada.



Para um amigo querido.

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Os doze trabalhos - Parte IV - Final.

Cansado dessa vida e ansioso para ver a sua amada, Hércules voltou à fazenda para exigir do Coroné que cumprisse sua promessa. Antes passou na vila para rever os amigos. Já não era mais visto como lunático e a população, que o recebeu como herói, o olhava com admiração, gratidão e muito respeito. Havia muito que não passava pela região. Fora avisado por um aldeão que Euristeu havia contratado um exército de mercenários e treinado os homens com mão de ferro. A fazenda era cercada por muralhas e o velho estava cada vez mais louco. Pedia que o chamasse de Dom Sebastião e mantinha a única filha trancada a sete chaves no alto da torre, erguida na fortaleza onde outrora era uma bela casa branca em estilo colonial.

E esse foi o seu último trabalho, o décimo segundo. Nosso herói derrubou a muralha com um grito: o nome da mulher amada. Em dois dias de batalha, havia arrasado o exército de Euristeu e escalava a torre. Só conseguira manter-se vivo por que foi alimentado pelo pensamento de que um dia, aquele momento ia chegar. O coração quase lhe saía pela boca. Finalmente alcançou o topo.

Fitou aqueles olhos novamente e sentiu-se invadido por um sentimento jamais experimentado. Seu peito era inundado por uma ternura que se expressava em um sorriso acompanhado por lágrimas de felicidade. Tomou a amada nos braços e sentiu seu calor... As pernas lhe fraquejavam. Não sabia o que fazer, ensaiara tantas vezes aquele discurso e agora não era capaz de soltar um sussurro sequer. Não havia nada para se dizer.

Mas algo mudou. Hércules arreganhava a boca mostrando os dentes naquilo que pretendia ser um sorriso, mas não passava de um pavoroso esgar estampado no seu semblante. Olhava angustiado aqueles cabelos negros, finíssimos, que a brisa, em seu assédio insistente, parecia querer levar. Os dois estavam tão conectados no momento anterior que, por mais clichê que possa parecer, não há outra expressão... “eram eles uma só pessoa”. Naturalmente, alguma alteração naquela aura seria sentida por qualquer um dos dois. De sorte a bela rapariga não precisou perguntar mais nada, entendeu tudo prontamente, antes mesmo que o próprio Hércules tivesse plena consciência do que se passava consigo.

Tão rapidamente quanto o lampejo de dúvida que se abatera sobre ele, veio a resposta. E ela foi decifrada na expressão daquela moça. Chegaria a ser engraçado se não fosse demasiadamente trágico. Aquele rapaz, que sempre teve certeza de que encontraria a si mesmo na amada, encontrou a dúvida, que trouxe na garupa uma outra certeza que divergia daquela de toda uma vida. O fato é que ele esperava se encontrar ao fitar de novo aqueles olhos e aconteceu justamente o contrário, pois foi neles que ele se perdeu.

Eis o mistério da fé, o paradoxo da vida. O homem que havia enfrentado as mais pavorosas bestas, escalado montanhas, vencido enormes distâncias e desviado o curso de rios, fugiu como um garotinho assustado com algo ainda maior que todas àquelas dificuldades e provações. O amor daquela bela donzela dos olhos tristes.

A moça não suportou a dor e permaneceu na torre, onde jaz até hoje. Morreu de tristeza na mesma noite. As histórias dão conta que o sofrimento atormenta a moça mesmo depois da morte e todos ainda relatam o mito da mulher da meia-noite. Até hoje ninguém mais soube de Hércules.

Pedi mais uma cerveja e fiquei pensando por mais meia hora. Dei de ombros, paguei a conta, me despedi e fui para o carro pensando que ainda havia o décimo terceiro trabalho, afinal, ainda tinha um pneu pra trocar e a caminhada era longa.

Uma semana depois, passei naquele mesmo trecho da estrada. Não sei por que cargas d'água decidi fazer um pequeno desvio e entrar na vila. Talvez tenha pensado em tomar um trago daquela cachaça braba do alambique do “cumpadi Mané Osóro”. Simplesmente não acreditei no que vi.

A cantina estava em ruínas, o telhado havia desabado e as prateleiras estavam tomadas pelos cupins. Perguntei a um moleque que passava na frente o que havia acontecido e ele me respondeu que não sabia, pois desde que nascera aquele local estava abandonado. Na fachada, sob o lodo que tingia a cal das paredes, ainda se lia em letras garrafais: “BAR MEDITERRÂNEO. Organização: Hércules”.

terça-feira, 7 de agosto de 2007

Os doze trabalhos - Parte III

A essa altura, a filha odiava o pai não apenas pelo canalha que ele era, mas por usá-la para forçar aquele bravo forasteiro por quem ela se apaixonara a resolver de maneira conveniente todos os problemas dele. De certa forma se sentia culpada, pois, indiretamente, ela causava sofrimento e provação ao ser amado. Por esta razão, odiava a si mesma. Vivia reclusa no quarto, não por vontade própria, pois não tinha anseio algum de se enterrar no mundo, mas por ordem expressa do pai.

Enquanto a beldade sofria e embebedava seus travesseiros com suas lágrimas, Hércules continuava com seus trabalhos. Capturou o filho do caos, Saci Pererê, criatura que parecia ter nascido na própria Caixa de Pandora. O negrinho perneta era um serelepe bagunceiro que virou a vila ao avesso. Era proibida por lei a criação deles, mas um fazendeiro local ignorou a norma e mantinha alguns em cativeiro, até que um danadinho se soltou e fez diabruras por onde passou. O vigia lá de casa jura de "pé junto" que o Katrina não foi nada de furacão, e sim um pestinha desses... Disse também que a causa de tudo é o que tem naquele "cachimbo catingoso", e que se você conseguir tomar, tem ele na mão. Foi assim que nosso herói conseguiu prendê-lo.

Derrotou Rodolfo, o barba ruiva, menino dos cabelos de fogo que vive na lagoa e não podia ver uma lavadeira que atacava logo e depois atirava suas vítimas aos crocodilianos que ansiosamente esperavam naquelas águas serenas.

Deu uma pisa em Cumadi Fulôzinha, que havia fumado um cigarro de palha que não era propriamente de palha, deixado por maldosos caçadores que queriam se aproveitar da ausência dela. Depois desse cigarro, a defensora da floresta viciou-se e quando estava sob o efeito do “boró” ficava muito doida. Estava fazendo trança até em cavalo de carrossel. Foi preciso Hércules dar uma surra de galho de goiabeira nela e raspar suas famosas madeixas trançadas pra ela deixar de safadeza. Cumadi Fulôzinha agora usa o fashion cabelo raspadinho estilo Ronaldinho e parece-me que tomou jeito.

Correu mais que o Curupira, o menino dos cabelos de fogo e pés virados. Esse trabalho foi um mero capricho de Euristeu, pois o Curupira era inofensivo. Já não se ouvia mais o tropel medonho e desenfreado das mulas-sem-cabeça... As mulheres já não viam mais graça nos padres de fala mansa e palavras doces.

A região sofria uma das maiores estiagens já vistas e as plantações da fazenda do Coroné Euristeu eram um grande árido plano com alguns talos secos que escaparam da fome canina dos bovinos que a esta altura jaziam no chão rachado - esqueletos calcários de uma brancura somente igualada pelas nuvens que ausentavam-se do céu. Hércules desviou o Riacho do Navio e o Rio Pajeú. Hoje eles vão dar no Rio São Francisco, como canta o velho Gonzagão.

Foi até Goiana e derrotou as mulheres de Tejucupapo, ferozes amazonas que outrora haviam expulsado o exército Orange. Capturou Maria Camarão, a Hipólita pernambucana, descrita pelo Almirante Lichthant como o próprio Leviatã. Era horrorosa, enorme, tanto vertical quanto horizontalmente. Dizem que o velho William Blake viu anos depois a fotografia no jornal e aquela imagem aterrorizou seus sonhos para todo o sempre.

O Lobisomem agora molha o biscoito ração no “leitxe com pêra” e em noite de lua cheia freqüenta a veterinária, inventa uma tosa mas todos sabem que é só para dar uma espiada naquela Poodle Toy... O problema é que ele é tímido e tem vergonha de falar dos sentimentos. O Papa Figo foi fazer seu tratamento de cirrose, já não bebe mais. Disse que foi o velho curandeiro cego, um tal de Tirésias, que lhe deu a receita de fígados de infantes. A fama de Hércules se espalhava por todo o interior do Nordeste, até a Besta Fera, que de besta só tem da cintura pra baixo, tratou de por suas ferraduras Iron Shox, ultima palavra da Nike em calçados para eqüinos e se mandou a galope acelerado. A danada corre até hoje.

domingo, 5 de agosto de 2007

Os doze trabalhos - Parte II

Certo dia, aproveitando a temperatura amena que o pôr-do-sol proporcionava e a ausência daquele déspota que era seu pai, saiu para uma cavalgada. O acaso a fez encontrar seu herói, que prontamente abandonou a sua caçada para deslumbrar-se com o feitiço da beleza incomum daquela moça, realçada pela alaranjada atmosfera crepuscular. Assim que fitou aqueles olhos azuis, soube que jamais teria sossego novamente. Hércules sentiu imediatamente a mão da maldita Afrodite naquilo tudo. Aquele breve instante definiria fatalmente a sua vida.

A moça, ruborizada, fugiu pra casa. Hércules acampou na frente da porteira da fazenda e ali permaneceu por trinta dias e trinta noites, suportando o abrasador inferno do meio-dia e o tiritante frio antártico da meia-noite. Solidão embalada pelo grito do silêncio daquela longínqua região, somente quebrado ocasionalmente por um uivo dos ventos, recado de Éolo mandado por Hermes via sedex. Até que na alvorada de um novo dia, o Coroné chega montado no seu imponente cavalo, ainda mais negro que aquelas noites solitárias que passara ali.

Sempre impecável com seu terno de linho branco, Euristeu dava claras mostras de que resistia bem ao tempo. Não era muito alto, mas o seu porte robusto e o seu ar marcial impunha respeito a quem o vislumbrasse, ainda que de longe... Tinha um queixo quadrado, pequenos olhos cinzentos, mas inteligentes e duros, realçando assim o seu aspecto viril.

Hércules o saudou e pediu cinco minutos de sua atenção, secamente negado pelo altivo Coroné, que marcou uma audiência para depois da sesta. Pontualmente o rapaz chega ao compromisso. Contudo, foi preciso esperar seu anfitrião, que era um tanto caprichoso. Meia hora depois, já sentado nos degraus da escadaria principal da casa comendo rapadura, nosso rapaz ouve o chamado de uma preta velha, muito gorda, já de cabeça branca. Aquela deveria ser a governanta da casa. Logo passou para a sala de estar, onde era esperado pelo Coroné, que, sentado confortavelmente numa poltrona que mais parecia um trono, fumava um daqueles charutos da terra de Fidel. E assim, respeitosamente, Hércules explicou em poucas palavras que se apaixonara pela filha do seu interlocutor. Não chegou sequer a fazer o pedido, foi interrompido por uma estrondosa gargalhada do Coroné, que não fazia questão nenhuma de ter um pingo de respeito pelo decidido rapaz.

-Você tem coragem filho, admiro isso em um homem. Façamos o seguinte, meu bom jovem: Darei a você a chance de me provar que é digno da mão da minha filha, depois disso conversamos. Procure meu capataz, ele te dirá o que fazer... Você vai poder mostrar o seu valor.

O capataz, maligno que só ele, deu as instruções com aquele sorriso meia-boca, como quem diz “pegasse na de Chico, parêa”. A tarefa designada ao nosso herói era árdua, mas nem de longe a mais dura que enfrentaria. Ora, se você assiste Discovery Channel, ou lê National Geographic, sabe que o Lobo-Guará é uma criatura tímida e furtiva. Entretanto, num dos ataques constantes ao galinheiro da fazenda, esse pobre animal fora mordido por um cão raivoso(hidrofóbico).

O Bicho andava pelas cercanias do galpão dos vaqueiros e já havia feito várias vítimas, inclusive o mais valente dos empregados da fazenda, numa tentativa fracassada de captura. Desafiando todas as expectativas, Hércules dominou o animal doente e o estrangulou. Retornou vestido com uma manta feita da pelagem espessa do bicho, confeccionada por ele mesmo aconselhado por um ancião que acreditava ter poderes mágicos.

Havia cumprido com certa dificuldade a tarefa designada, mas há que se considerar que nenhum outro conseguira de arma em punhos o que ele fez apenas com as mãos nuas. De fato, um feito impressionante. O Coroné, entusiasmado com o rapaz, destinou-lhe mais tarefas. Não havia outra maneira de ter a mão da filha do homem em casamento, tinha que cumprir os trabalhos arriscando seriamente a vida, sob pena de nunca mais ver a amada.

Escalou montanhas, dormiu no sereno dos grandes espaços abertos, comeu insetos e bebeu de cactos, realizando grandes feitos sucessivos, um mais incrível que o outro, e assim se seguiu por muito tempo. Hércules submetia-se aos caprichos de Euristeu por aqueles olhos que ele nunca haveria de esquecer.

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Os doze trabalhos.

Era meio dia e trinta e seis minutos. O sol fustigava tão intensamente que parecia que Deus estava brincando de queimar com uma lupa. Não havia ninguém nas ruas daquele vilarejo. Não se pode sequer dizer que estava entregue às moscas, pois nem elas ousavam desafiar a fúria de Apolo.

Pessoas dormitavam em suas cadeiras de balanço nos terraços, cobrindo preguiçosamente o rosto com o chapéu de palha, paz quente da sesta sagrada. Na única cantina da pequenina vila, alguns bebuns, o cantineiro que era garçom, cozinheiro e dono do estabelecimento, algumas moscas... e eu.

Estava de passagem pela cidade quando o pneu do carro furou. Assim que pus os pés para examinar o que havia ocorrido, percebi que teria o mesmo destino que asas de Ícaro, se me propusesse a realizar a tarefa necessária – pior pesadelo feminino – trocar pneus.

Não havia outro remédio... Tinha que esperar. O calor era tão intenso que superava os mármores de Dante. Pedi uma cerveja gelada.

-Seu dotô, a gente tem freezer não, po mode que pelas banda de cá ainda num tem lúis. Mai tem uma cachaça da boa, lá do alambique do cumpadi Mané Osóro.

Praguejei qualquer coisa ininteligível, me queixando da sorte e aceitei a pinga oferecida. Sorvi de um gole só, sob os atentos olhares dos profissionais papudinhos de carteira, que queriam saber se o doutor engomadinho era cabra macho, sim senhor! A orelha esquentou e a garganta ardeu, aumentando ainda mais o calor que sentia. Afrouxei o nó da gravata.

Sabia que não poderia passar a tarde inteira ali, tomando cachaça, então, pedi uma cerveja mesmo natural (o natural daquele lugar era tão quente que a cerveja vinha praticamente escaldada), e instantaneamente me ocorreu a lembrança dos antigos egípcios, que bebiam o precioso líquido às margens do mar de areia e fogo, deserto do Saara. Eles também não tinham freezer. De modo que fiquei bebericando ali, enquanto assistia despretensiosamente ao sono do cachorro e a luta interminável de sua cauda contra as moscas. O cantineiro puxava prosa.

Ói dotô, sei que o sinhô é um ome de estudo e já correu esse mundo afora mai dessa que eu vou contar o sinhô nunca ouviu.

Não lhe dei muita importância no início. Ainda me interessava mais pelo rabo do canino.

Ele me contava que há alguns anos atrás, apareceu por aquelas bandas um “cabôco parrudo como eu nunca vi”. Alguns achavam que ele era “tantã” por causa de um hábito esquisito... saía falando sozinho e olhando pra cima, como se falasse com os céus. Era um mestiço alto, forte, pele acobreada e olhos claros. Seu nome era Hércules. O rapaz se apaixonou pela filha do corrupto “Coroné Euristeu” prefeito da vila.

A moça era lindíssima, daquelas que não faz esforço algum para sê-lo. Feminina, de feições delicadas, pele alva, cabelos negros, olhos tristes, doces e azuis, a bela rapariga desgostava das vilanias cometidas pelo seu pai. Quase não saia de casa... Quase.

Continua...

domingo, 29 de julho de 2007

Um domingo na Sibéria da solidão.

Recife, 29 de julho de 2007. Domingo.

O dia começou com o escandaloso despertador gritando, anunciando a tragédia que se seguiria. Acho que não há objeto mais odiado que um despertador estridente. Pois bem... O susto foi tão grande que eu dei um pinote na cama e me agarrei no lustre, que não agüentou o peso e desabou comigo, tingindo de cinza o meu belo pijama de seda oriental. Entra a minha mãe no quarto, despejando um vendaval de exclamações nem um pouco elogiosas.

Durante o banho morno, nos poucos momentos permitidos pela latejante ressaca, pensava: "Calma, o dia vai melhorar, o Sport joga hoje..." Ledo engano, para a minha tristeza. Sentei à mesa para o almoço, ainda sob o olhar emburrado da véia, que vigiava o tremendo (aqui essa palavra pode ser entendida até como literal) esforço que eu fazia ao levar o garfo à boca. A sesta sagrada na minha redinha da varanda foi interrompida por um implicante São Pedro.

Dei de ombros conformado, sabia que aquele não era o meu dia. Ainda assim, reuni alguns amigos e fui ver o meu Sport jogar. A pé, é claro, pra dar a chance de São Pedro me molhar de novo. O jogo... esse eu não quero nem começar a falar dele, pois não acabaria esse parágrafo... destruiria o PC antes. Basta dizer que voltei do jogo andando, sozinho, com frio, molhado e ouvindo gracejos de alguns anti-Sport que existem na cidade. No céu, uma lua transbordante servia de inspiração aos namorados. Lembrei, com inveja, de um amigo meu, que tem todos os prós de um namoro, mas que sabiamente driblou o zagueiro da possessividade feminina.

Ah, mas ainda não tinha terminado. Finalmente cheguei em casa, não sem antes passar por aquele porteiro que é o tricolor mais chato de "Caza Amalera". Abro a porta e me deparo com a cerimônia de encerramento do Pan (quer coisa mais chata que essas cerimônias? Talvez só Domingão do Faustão).

Tomei uma ducha morna pra lavar o dia, entrei no MSN pra garimpar o que fazer num domingo chuvoso em Recife. Mais gracejos. E cá comigo mesmo pensei: "Diabos, por que cargas d'águas ainda não inventaram namoro dominical?!" Ah Recife... Macondo da existência.

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Academia Brasileira de Letras Bêbadas (ABLB)

Quem bate o centro e inicia - espero que com o pé direito - este espaço, é um mero estudante da ciência da boemia. Aqui quem vos fala é Paulo Bilola (Paulinho Brahma, ou como queira chamar, caso se agrade mais de outro nome).

A diferença entre um simples bebum e um boêmio, é que, enquanto o primeiro devora a garrafa com os olhos, mesmo antes de abrir, o segundo sorve cada gole com apreço e reflexões... Mas isso eu não preciso dizer a vocês, seletos amigos, que, com toda a certeza já são escolados na mais nobre e bela das artes.

Como todo boêmio é, antes de tudo, um ser romântico e literário, achei por bem criar este blog, que tem como objetivo soar como um sussuro, mesmo um "bafejo" de idéias ou meras constatações... Distoando assim de algumas apelações gritantes e amostradas que se vê por aí. Os temas são os mais variados, desde um episódio qualquer, a uma queixa no idioma carençolandês, do nosso querido Xico Sá.

Apreciem sem moderação.