quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Os doze trabalhos - Parte IV - Final.

Cansado dessa vida e ansioso para ver a sua amada, Hércules voltou à fazenda para exigir do Coroné que cumprisse sua promessa. Antes passou na vila para rever os amigos. Já não era mais visto como lunático e a população, que o recebeu como herói, o olhava com admiração, gratidão e muito respeito. Havia muito que não passava pela região. Fora avisado por um aldeão que Euristeu havia contratado um exército de mercenários e treinado os homens com mão de ferro. A fazenda era cercada por muralhas e o velho estava cada vez mais louco. Pedia que o chamasse de Dom Sebastião e mantinha a única filha trancada a sete chaves no alto da torre, erguida na fortaleza onde outrora era uma bela casa branca em estilo colonial.

E esse foi o seu último trabalho, o décimo segundo. Nosso herói derrubou a muralha com um grito: o nome da mulher amada. Em dois dias de batalha, havia arrasado o exército de Euristeu e escalava a torre. Só conseguira manter-se vivo por que foi alimentado pelo pensamento de que um dia, aquele momento ia chegar. O coração quase lhe saía pela boca. Finalmente alcançou o topo.

Fitou aqueles olhos novamente e sentiu-se invadido por um sentimento jamais experimentado. Seu peito era inundado por uma ternura que se expressava em um sorriso acompanhado por lágrimas de felicidade. Tomou a amada nos braços e sentiu seu calor... As pernas lhe fraquejavam. Não sabia o que fazer, ensaiara tantas vezes aquele discurso e agora não era capaz de soltar um sussurro sequer. Não havia nada para se dizer.

Mas algo mudou. Hércules arreganhava a boca mostrando os dentes naquilo que pretendia ser um sorriso, mas não passava de um pavoroso esgar estampado no seu semblante. Olhava angustiado aqueles cabelos negros, finíssimos, que a brisa, em seu assédio insistente, parecia querer levar. Os dois estavam tão conectados no momento anterior que, por mais clichê que possa parecer, não há outra expressão... “eram eles uma só pessoa”. Naturalmente, alguma alteração naquela aura seria sentida por qualquer um dos dois. De sorte a bela rapariga não precisou perguntar mais nada, entendeu tudo prontamente, antes mesmo que o próprio Hércules tivesse plena consciência do que se passava consigo.

Tão rapidamente quanto o lampejo de dúvida que se abatera sobre ele, veio a resposta. E ela foi decifrada na expressão daquela moça. Chegaria a ser engraçado se não fosse demasiadamente trágico. Aquele rapaz, que sempre teve certeza de que encontraria a si mesmo na amada, encontrou a dúvida, que trouxe na garupa uma outra certeza que divergia daquela de toda uma vida. O fato é que ele esperava se encontrar ao fitar de novo aqueles olhos e aconteceu justamente o contrário, pois foi neles que ele se perdeu.

Eis o mistério da fé, o paradoxo da vida. O homem que havia enfrentado as mais pavorosas bestas, escalado montanhas, vencido enormes distâncias e desviado o curso de rios, fugiu como um garotinho assustado com algo ainda maior que todas àquelas dificuldades e provações. O amor daquela bela donzela dos olhos tristes.

A moça não suportou a dor e permaneceu na torre, onde jaz até hoje. Morreu de tristeza na mesma noite. As histórias dão conta que o sofrimento atormenta a moça mesmo depois da morte e todos ainda relatam o mito da mulher da meia-noite. Até hoje ninguém mais soube de Hércules.

Pedi mais uma cerveja e fiquei pensando por mais meia hora. Dei de ombros, paguei a conta, me despedi e fui para o carro pensando que ainda havia o décimo terceiro trabalho, afinal, ainda tinha um pneu pra trocar e a caminhada era longa.

Uma semana depois, passei naquele mesmo trecho da estrada. Não sei por que cargas d'água decidi fazer um pequeno desvio e entrar na vila. Talvez tenha pensado em tomar um trago daquela cachaça braba do alambique do “cumpadi Mané Osóro”. Simplesmente não acreditei no que vi.

A cantina estava em ruínas, o telhado havia desabado e as prateleiras estavam tomadas pelos cupins. Perguntei a um moleque que passava na frente o que havia acontecido e ele me respondeu que não sabia, pois desde que nascera aquele local estava abandonado. Na fachada, sob o lodo que tingia a cal das paredes, ainda se lia em letras garrafais: “BAR MEDITERRÂNEO. Organização: Hércules”.

2 comentários:

Unknown disse...

Paulin, um poeta.

Faca um livro, conte sua historia.Sua vida eh rica, eloquente por si só, capaz das mais belas licoes que jamais sonhara saber.
Obrigado Paulin.Seu conhecimento é transmitido sabiamente para as futuras geracoes.

Esperamos mais a cada dia. Sua tarefa,está só comecando. Deus te guie=)

Anônimo disse...

Paulim,
Como já havia dito em outras linhas "és um contador de causos de primera catiguria".E apesar da "selverja", a tua sobriedade é espantosa!É essa a diferença entre um bebum e um boêmio: a degustação! Algo q transcende a pura embriaguez de um sujeito alcoolizado e atinge a metafísica através da “filosofia etílica”... Brindemos aos deuses, e ergamos as nossas canecas de Brahma aos céus!

Vida longa a Paulo Bilola!
Abraço, Ricardo Beltrame.