sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Réquiem

Lembrou-se amargamente daquele fato por diversas vezes nos anos que se seguiam. Costumava sonhar acordado. Aquela recordação resistia imaculada de forma incrível à erosão do tempo, esse borrão que apaga ou ofusca até os fatos mais importantes que guardamos no mais remoto rincão de nossas mentes.

Sempre soubera que aquela haveria de ser a sua última lembrança, e, certamente, era a mais recorrente. No dia de sua morte, bebericava naquele mesmo saloon onde desafortunadamente se encontrava há anos. Pediu mais uma cerveja e se deu conta de que o peculiar gosto amargo daquela doce bebida trazia a tona àquela lembrança que o assediava com certa constância. Sabia que lhe fazia mal, mas ainda assim a buscava sofregamente, tal qual, um viciado busca a mão enevoada que o ópio lhe estende.

Ocorreu-lhe, entre um trago e outro, que aquele fatídico dia, marcado na mais amarelada das páginas de seu calendário, perdurava até então... Pra ele, o tempo parou ali, explicando o fato da lembrança permanecer intacta.

Ainda jovem, no desabrochar de sua adolescência, costumava ir ali para confraternizar com os colegas, ou mesmo para refletir um pouco... Gostava de ver o movimento e a agitação das ruas. Entretanto, justamente nesse dia, pôs-se a conversar com o balconista, de sorte que se encontrava de costas pra rua. Uma voz sussurrou-lhe aos ouvidos, não sabe até hoje se foi o anjo ou o diabo, mas o fato é que ele virou-se, e como que por um ímã, seus olhos foram atraídos. Assistia extasiado à cena que se lhe apresentava.

Não havia adjetivo, superlativo ou qualquer artifício lingüístico em nenhum idioma conhecido que a definisse, nem talvez na língua dos anjos. A beleza daquela criatura que desfilava ali, perante a sua figura, transcendia os padrões humanos. Nesse momento ela deslizava, como que andasse sobre brumas. Olhou o pobre rapaz nos olhos e lhe sorriu um sol. Passou anos procurando a sua musa, para depois compreender que ela o encontraria quando ele estivesse pronto.

Via-se claramente, naqueles dias particularmente mais melancólicos que se sobrepunham, nos olhos marejantes - binóculos da saudade que refletiam sua memória - estilhaços daquele sol, projetado perfeitamente por suas lembranças, mas fragmentado pela dor agridoce e angustiada do seu coração. O Olhar sempre perdido no horizonte parecia somente interessar-se pelo que via dentro de si, desprezando qualquer possibilidade de absorver o mundo que lhe rodeava. Era como quisesse se virar do avesso para que aquelas coisas tão belas viessem à tona novamente. Vivia ensimesmado e contemplativo, já não conversava mais, resumindo-se a divagar poucas palavras, sempre muito mascadas antes de serem pronunciadas. Murmúrios.

Pediu outra cerveja, mais outra, e mais outra. Desejava mergulhar de cabeça nos seus pensamentos, cada vez mais intensos. Pagou a conta e levou a saideira para tomar em casa. Sentou-se na sua poltrona preferida e abriu a garrafa... Sabia que aquela seria a última cerveja que haveria de tomar. Sorveu em pequenos goles saboreando com o palato de sua língua. E, serenamente, esperou a morte que há muito lhe fora anunciada.

Ela veio com aquele sorriso, tomou-lhe a mão e acariciou seu rosto com uma flor amarela. Assim permaneceram sem dizer absolutamente nada, apenas contemplando-se mutuamente. Havia se apaixonado há anos e desde então esperava por esse momento. Sorriu tranqüilamente, tomou aquelas mãos frias e brancas, fitando os dedinhos delicados e pensou que pareciam ser de porcelana... E assim passaram muito tempo, até que ela o convidou e saíram caminhando de mãos dadas para não mais voltarem.

Os velhos camaradas, que sempre deixavam flores num casco vazio de cerveja, liam em sua lápide a seguinte frase: “O boêmio que esqueceu de viver, se entregou à bebida, mas, por amar demais a solidão, transcendeu por overdose de melancolia”. Nunca compreenderam – nem podiam - que a morte sempre o acompanhara e que ele aguardava ansiosamente a sua aparição, para definitivamente encontrar a sua amada.



Para um amigo querido.

7 comentários:

bekinho disse...
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bekinho disse...

Somente a Ingratidão - esta pantera
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!

Anônimo disse...

pq tu fica apagando os comentários, hein?
ousadia, minim!
deixa o povo falar!! x)

;**

R.

Samizdat1905 disse...

Irmãos! Patetas!
A Trindade Ébria!

Anônimo disse...

onxi, nem tu é de família quanto mais teu blog.
e aposto que foi alguma coisa suja que vc n queria que caísse aos olhos do povo x)

Ane disse...

Ui!
Ficou bravinho?
eu sabia que eu tava certa, no final. \o/

e tu me ama, não adianta bancar o grosso me dando fora no meu blog :]

Bruno Malveira disse...

"amar demais a solidão..." Talvez essa possa ser a razão por ele ter se apaixonado. A morte anda junto com a solidão, e as duas sempre se manifestam em conjunto. Uma história que é contada com uma calma hipnotizante, como uma velhinha contando histórias antigas, prendendo a todos que se interessam minimamente pelas saborosas palavras que ela levemente adoça.